quarta-feira, 4 de maio de 2016

Tributo - Álvaro de Campos

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?) ”


Tabacaria – Álvaro de Campos (um dos heterónimos de Fernando Pessoa)

O vício!

Janela, janela essa fechada ao mundo,
No meu vicio, de me enclausurar em mim,
Aberta de vez em quando a matar um vício
Eu matar-me a mim! Lentamente,
Num fumo retumbante dissipado no ar,
Que me inunda a caixa torácica,
A rua, essa rua, a rua que separa janelas,
Essa abertas, ou fechadas,
Folhas secas que a atravessam
Empurradas pelo vento seco de agosto,
Num calor que o verão nos deixou,
Sem que o levasse a outras áridas paragens.


A torre, que do meu quarto perscruto no horizonte,
O toque das avé-marias,
Confronto o relógio, numa confrontação casual,
Maquinal talvez, no apressado movimento circular,
E o toque, memórias passadas, convite,
O convite aos crentes, que crêem,
Que se prostrem e orem, na reflexão do que são,
E eu? Quem sou aqui? Ninguém…


Ponte no horizonte, como qualquer outra ponte,
Que me atravessa para a outra margem
Sem que me leve a lugar nenhum…
Viajo, olhos postos no horizonte,
Vagos, vidrados, sem vida,
Mas parto, sem que tenha saído,
Viajo na mente, firmemente convencido
Que parti, sem realmente sair.
Da janela que abri há minha morte,
Para que um vício matasse,
Vejo também os prados do silêncio,
Local onde jazem os bons,
Onde repousam os que vos fazem falta,
Pois os maus nunca morrem…


Deixo lá fora, fora de ti, bem longe
Lezíria de palha seca, doirada
Sob um sol de fim de tarde
Que obliquamente te ilumina
Palha que queimo, neste fumo
Palha que tanto inquieta, nas matas, nos bosques
Nobres e voluntariosos homens da paz,
Que com o coração nas mãos
Se entregam pelo bem-estar dos outros,
Anónimos, sem rosto, os primeiros
Vítimas de desequilibrados seres humanos
Que para satisfação de um ego retorcido
Queimam, fazem arder, matam
E eu, aqui, inflamando com uma pedra o gaz,
Que inflama a triste e seca palha do tabaco!


Não fumo no quarto,
Respeito? Talvez, mas o cheiro esse incomoda
Incomoda-me o cheiro, nas vielas sujas,
Do mendigo descalço,
Do obreiro transpirado ao meu lado
Num comboio apinhado
Num qualquer regresso a casa.
Viajo, mente inquieta,
Sento-me de novo,
Em frente a ti, nesta negra cadeira,
Com um negro estofo!
Não há na escrivaninha papeis,
Nem se encontra gasta pelo tempo,
Apenas tu, negro computador,
Escrevo-te, insultas-me, reparando erros,
Pois os dedos não acompanham
A velocidade da viagem!


Os dedos, esse apêndice tão humano,
Dedos que mudaram o mundo,
Que inquietos dão, oferecem-se,
Dão-se, e que tanto roubam ao assinar
Um qualquer decreto de impostos,
Os meus dedos, que teimam
Em não me obedecer!
Um deles em particular,
O que a ti um dia ofereci,
Que te deixei marcar, para que todos soubessem
Que te pertenço, ou para a eu me lembrar,
Que me pertences, ou meramente
Saber que nos ligamos para a eternidade!


Aqui ao lado a janela, fechada,
Abra-o novamente, a querer matar
Um vicio que me mata,
Desgraça, o infortúnio, sem tabaco,
Saio apresado, pela rua deserta,
Cruzo a esquina, o sorte,
Ao fundo da rua, bem lá no fundo
A tabacaria, essa, está aberta!


Alberto Cuddel

Poema de tributo ao autor que mais me impulsiona a escrever!

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